Resumo escrito de uma visita guiada (301)

 

"Mulher tocando viola da gamba"

170 x 140 cm. Carvão e grafite s/ papel. 2014



O que é o tempo em arte? Que tempo é o meu que não me revejo na cronologia e nas categorias habitualmente oferecidas? Como se representa no discurso crítico o fragmentário aliado ao idioma da pintura?

A cronologia da evolução estilística não me satisfaz, de todo. A história que me interessa é feita de camadas sobre camadas que é necessário desvelar para entender a razão. O tempo da arte é fragmentado por natureza. E raramente é visível como um acontecimento linear. Os acontecimentos podem repetir-se séculos depois de terem sido inicados. A inquietação e vitalidade de outros tempos, de outros pintores, são, provavelmente, ainda válidas

Arte é comumente o tema do museu e das colecções privadas que procuram a imitação, a correspondência, a oposição, o diálogo dos estilos, ou, simplesmente, a (re)valorização de certos autores. Nesse sentido, as colecções servem outros propósitos que não o entendimento geral dos fenómenos artísticos. O tempo, assim, repetido, torna-se unívoco e falseado. O tempo, em arte, nunca é unívoco.

A pintura, ainda que obedeça desde há séculos ao mesmo idioma não é normativa, mesmo quando encerrada no tempo de uma colecção. Para Tiziano, Tintoretto, Greco, Caravaggio, Poussin, Claude Lorrain, Velazquez, Rubens e Anthony van Dyck, Ribera, Artemísia, Goya, Valloton, Manet, Cézanne, Balthus, Ernst, Hendricks, Fischl, a espacialidade é um dos argumentos desse idoma. Mas todos reflectem, entre outros, um mesmo aspecto, aquele que leva a que o espectador e o autor assumam uma posição ao serviço de uma ideia generalizada: ambos congelam perante a imagem e assumem uma posição específica perante o espaço delimitado pelo campo visual do quadro.

O fruidor constrói uma ontologia a partir do seu ponto de observação e da sua capacidade de mobilidade. O objecto plano finou-se no Quattrocento. A bidimensionalide de Leonardo morreu perante a falta de escola de Greco. O espaço do observador e da tela são um só. A luz inside fortemente nas personagens em detrimento da profundidade. E a pintura reiventa-se a partir da sua materialidade.

O espaço da tela, a luz e a posição do observador são os três elementos sobre os quais a pintura contemporânea fez estilhaçar a pintura de ambiente (tipo Rafael).

Hockney e Alice Neel aproximam-se de Manet que, por sua vez, partilhou com Velazquez aquilo que parece ser a pintura-objecto. David Salle, Peter Halley, Dana Schultz, Hendricks, todos eles praticantes da pintura-objecto que oscila nas mesma dobradiças de um passado de inquietações não muito distantes, ao alcance de uma colecção, ou sala de museu. A figura do observador moderno foi inventado e reiventado vezes sem conta, muitas vezes sem que o próprio observador se dê conta que está a tomar parte de um jogo que já iniciou há muito tempo. O objecto pintado permite-se a ser questionado e vice-versa, tal como no caso das meninas, ou dos retratos dos anões pintados pelo Velazquez. A pintura é um espelho de duas vias: Manet e Veronese; o primeiro, "Un bar aux folie Bergère", o segundo, "O Banquete em casa de Levi" - este último caso reforçado pela chamada do pintor à presença da inqisição de Veneza, com a finalidade de se justificar pelo facto de ter pintado um cão em lugar de Madalena, S. Pedro a trinchar um pedaço de carneiro, ou por ter pintado dois soldados alemães. Hoje, como sempre, o objecto pictórico vale pela consciência do observador, pela sua posição momentânea frente ao quadro. Cria-se um sistema, decididamente, muito mais vasto que não acaba aqui.

A materialidade da pintura tem sido escondida pelo dispositivo ideológico posto em prática desde o Quattrocento. Breton concebeu algo semelhante: a pintura não era o instrumento de eleição da revolução Surrealista. Nem tão pouco era, para os líderes calvinistas do norte da Europa: a pintura representava os excessos do papado de Roma. A perspectiva monocular e enfadonha proposta por Rafael são medalhas que ficam bem na colecção do Vaticano. A materialidade da pintura deverá reflectir a inquietação e não a representação oficial da veduta.

A partir do final do século XVI, a originalidade consiste em transformar o espectador numa testemunha, mostrando-lhe as figuras que olham para um ponto perdido atrás de si, ou directamente nos olhos dos observador. Manet, no século XIX, é o criador do espectador comtemporâneo. Fez explodir o discurso pictótrico a partir do qual a pintura ocidental foi fundada. Tornou visível o que outros antes de si tinham iniciado: tornou visível o invisível, quero dizer o interior do que está representado no quadro, como por exemplo, a encenação comtemporânea da dor n' "O fuzilamento do Imperador Maximiliano X".

Os meus desenhos são representações da pintura, dentro da história da pintura, a que junto sem parcimónia um título. Estes objectos são o palco da própria gestação das ideias e do fazer que elas acarretam. Por vezes, na obcessão de fazer, ficam a pintura e o desenho entregues a si mesmos. Entram aqui o método e a admiração que tenho por Poussin. Dar a ver, ou melhor, neste contexto, da impossibilidade de dar a ver, refaço-me directamente no natural para o espaço encenado.

Como disse, na visita, não estou interessado no mimetismo, ainda que faça uso do fotográfico para chegar ao pictórico. Mas é tudo uma questão de idioma dentro de uma linguagem que julgo conhecer.

A naturalidade e o identificável, continuam, ainda assim, a opor-se à imagem ecrã e à facilidade de aceitação por parte do público. Estas pessoas que desenho e pinto estão vivas, cuidado.

 

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