Goya, revisitado (263)

Podia viver de outras coisas, mas se pudesse ficaria saciado com generosas talhadas de melão e presunto às fatias, pão e vinho, café.

A montagem já existe na cabeça à algum tempo, tendo-se definido recentemente o alinhamento, entre as sombras e a luz, permito-me apresentar a amante do Goya em versão da companhia das Índias.

 

A 5 DE OUTUBRO, NO MÓDULO, LISBOA, SEGUE-SE:

Figures and Grounds (Fadiga & Lassidão)

Os limites visíveis são os dos muitos caminhos possíveis, tal como a vida no planeta se multiplicou com a finalidade de o habitar. Assim, o erro entende-se, mas não se pode confundir o todo com as suas partes, ainda que sejam mais ou menos importantes, para o todo, a soma das suas partes. O título da mostra é, pois, Figures and Grounds (fadiga e Lassidão). Este quase texto, este título, secundado por um subtítulo referido em surdina é meio furtado a um artigo sobre Barkley L. Hendricks pintor negro norte-americano contemporâneo.

A presente exposição traduz-se num "novíssimo" conjunto de imagens. Submeto-me nela à Interpretatio Moderna de toda uma herança artística que dá forma a configurações mais ou menos canónicas. E digo isto, na medida em que as formas desta aventura passaram ao longo da história sem terem sido negligenciadas até atingirem um estado crítico reconhecível em museus e catálogos luxuosamente encadernados e escritos, mas é também um lugar onde tudo poderá ainda estar ligado e indiferenciado.

A minha história faz-se de inúmeros pintores. Sobretudo das suas imagens, podendo, a partir delas, quase certamente escolher um caminho como se se tratasse da travessia de um rio por cima das pedras para atingir a outra margem.

No entanto, advirto que, este tipo de poesia, este tipo de representação, este tipo de arte, não faz apelo directo à história e, singularmente, aos recursos da própria história, na medida em que tem origem naquilo que não pertence à história, mas sim ao momento exactamente anterior à história cujo campo é o do domínio do mito e da literatura.

Ainda que entre outros pintores admire Poussin, a possibilidade de seguir uma linha de pintor-filósofo parece-me claramente distante. Em primeiro lugar, a minha limitada capacidade de reflexão sobre os temas clássicos e, depois, o talento que não tenho para ir tão longe. Utilizei, é certo, alguns dos elementos que podemos identificar em Poussin, tanto na composição, como na construção da imagem: a paisagem e a origem literária dos temas. Tenho em conta outras fontes, provavelmente mais próximas do meu tempo. O Manet, segundo a permanência da inconclusividade que se observa no seu Le déjeuner sur l'herbe, está para as minhas figuras, cujo grau de realismo é bastante aceitável de acordo com a minha mão que está sujeita a um tempo de trabalho fragmentado devido à profissão que exerço (confesso nunca ter tido coragem para passar fome), como estará uma condição referencial de excelência para outros. Como esteve o Poussin para o Balthus - ver o rosto do primeiro pintado no rochedo à esquerda, no quadro do segundo La Montagne (L'Été).

Barkley L. Hendricks é, como já disse, uma referência importante neste conjunto de trabalhos. As suas personagens negras vestidas de branco tornam-se visíveis variando o seu grau de realismo.

As pessoas que desenhei para esta série existem na realidade, têm nome e Cartão de Cidadão. Existem, também, nestes desenhos de acordo com uma segunda vida que desejei providenciar-lhes. Como se não contente com a minha tivesse utilizado aquilo que tenho ao meu alcance para projectar nos outros a necessidade absoluta da poesia, do profundo impacto que a poesia deveria ter na vida quotidiana. A ruptura que este aspecto pudesse implicar na vida diária.

Desenhei literalmente às escuras, procurando na escuridão a luz, como se tudo isto pudesse ter outro sentido para além dos títulos e dos papeis que apresento.

Foi um Verão de poetas este que passou. De mudanças e estados de espírito contraditórios que me levaram a contar os dias em desenhos, a pensar em desenhos, a reflectir no limite físico do papel.

Reclamo para mim, correndo o risco danado de me não ligarem nenhuma, ou pensarem os críticos de arte que lhes estou a roubar o trabalho, a intenção pintada das figuras do Barkley, um certo Hockney com ares de pintor amaneirado renascentista, o aroma da escolinha de Barbizon, o actor de teatro pintado pelo Manet, a Alice Neel, a Charley Toroop, Irwin Lani, Alan Feltus, entre outros, mas também o gesto seguro e reflectido para além da abstracção (não quero dizer que a abstração não seja reflectida, mas neste momento considero a arte de características abstractas coisa decorativa e ao serviço do ambiente visual).

Os desenhos que apresento nesta série necessitam de contemplação para que se tornem válidos. As exigências do tempo social que vivemos, e penso, muito sinceramente ter há muito perdido o comboio e viver fora dele em termos artísticos, implicam a realidade (não o realismo), mas a realidade como fonte segura de um referencial mesmo que criativo, acima dos estados e das excepções financeiras. Este é um tempo de bandeiras, do vermelho e do negro. Não pretendo, como certamente se pode observar, a realidade documental, que me parece aborrecida, ainda que possa ter sentido em certos contextos artísticos. Gostaria com o correr dos dias de atingir um nível de exigência do olhar sobre a qualidade do instantâneo.

Sentia-me muito mais feliz se existisse um movimento de ideias claras e transparentes, coisa que ultrapassasse as pudicas fronteiras do ser e do tempo. Uma coisa baseada na diferença e na liberdade.

Ou há canone, ou não há arte!

 

 

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