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Primeiro foi aquilo tudo. Palavra atrás de palavra. Rescrevi duma assentada um oceano de coisas. E li tudo, uma vez e outra vez, até que as palavras já se liam por si. Fiquei zonzo e ninguém deu conta disso, com cara de letra e cheio de sede aguentei-me numa dieta parca para não perder o tino com coisas desnecessárias. Matava a sede apenas aos Domingos, fazendo da secura um acto artístico. Depois, tratei de enroupar os pequenos contos e dar-lhes um nome de acordo com o seu corpo. E o ensaio foi difícil, quase Deleuziano. Pretendi ser o momento. Tudo é momento, ou tratável como um momento, como se não existisse mais nada, nem o depois, nem o antes. Vivi, assim, cada momento ainda que não saiba exactamente o quê. Aprendi que quando se presencia a acção já não estamos no bosque, mas sim na sua orla e é possível ver as montanhas e os caminhos. Obsessivamente, tratei de cada coisa no seu poiso e pretendi nesse outro momento transformar tudo numa imagem. A essência em ar respirável, pesei-a delicadamente, acrescentei farripas de verbo e pó, fruta, papel de seda, viagens num certo hemisférios do cérebro mapeado para viajar sem sair do lugar. Por fim, o operador da máquina, o único tipo de Lisboa que seria capaz de fazer o seu trabalho de impressor naquele soberbo orgão que lê e imprime ao mesmo tempo, coisa de tipografia antiga, cheia de magia e óleo finos, museu do tipo, da letra à tinta, adoeceu. Padeceu dias a fio de mal da Lua. Estado dolorável, febril, vertiginoso e frágil, o corpo amanteigado e sem capacidade para operar a máquina ficou preso e inerte. Fiz um telefonema e atendeu-me um carteiro magro. Conversamos sobre alfaiates, agulhas e figurinos tropicais.

Hoje vou trabalhar o cabelo da filha dos embaixadores. O dia todo a esculpir uma sombra e fios de cabelos. E por isso não estou em casa para ninguém.

 

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